Governo propõe imposto sobre refrigerantes
25.04.24 | Por João Peres
Proposta de regulamentação da reforma tributária enviada ao Congresso prevê que ultraprocessados paguem mais impostos. Associação da indústria diz que imposto seletivo não funciona
O governo federal propôs a criação de um imposto especial sobre refrigerantes. A ideia faz parte do projeto de lei apresentado na noite de quarta-feira (24) pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, à Câmara e ao Senado para a regulamentação da reforma tributária aprovada no ano passado.
Com 360 páginas, o projeto prevê os caminhos para a adoção de um imposto único nacional. Além disso, o texto encaminhado ao Congresso dedica um capítulo inteiro à criação do tributo seletivo sobre seis grupos de produtos considerados nocivos à saúde e ao meio ambiente: veículos, embarcações e aeronaves, produtos fumígenos (como cigarros), bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas e bens minerais. No caso dos cigarros, já incide um imposto especial, de modo que a proposta do governo é manter a regra.
Na justificativa, o Ministério da Fazenda diz haver “consistentes evidências de que o consumo de bebidas açucaradas prejudica a saúde e aumenta as chances de obesidade e diabetes em diversos estudos realizados pela Organização Mundial da Saúde [OMS]”. Ainda de acordo com a pasta, a tributação foi considerada “um dos principais instrumentos para conter a demanda deste tipo de produto”.
Embora o texto do projeto de lei fale em “bebidas açucaradas”, o item a que faz referência na tabela de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) é mais amplo: abarcaria também as bebidas adoçadas, caso dos refrigerantes light e zero.
As alíquotas para cada grupo de produtos nocivos serão definidas por lei complementar. Além desse imposto especial, o governo previu que algumas categorias de ultraprocessados paguem alíquota cheia de tributação, sem margem para isenções – 26,5%, contra 10,6% no caso dos itens que terão direito a uma redução tributária.
Governo propõe imposto seletivo para “desestimular o consumo de bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente”
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Veículos
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Embarcações e aeronaves
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Produtos fumígenos (como cigarros)
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Bebidas alcoólicas
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Bebidas açucaradas
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Bens minerais
Em entrevista à Globo News no último dia 15, Haddad havia sido questionado sobre a possibilidade de tributação de ultraprocessados. “O grande debate será no Congresso Nacional. A população como um todo precisa estar atenta e participativa para que não caia no canto da sereia de imaginar que redução de imposto é bom em qualquer caso. Uma vez que a reforma tributária é neutra do ponto de vista de arrecadação, ela não pretende nem aumentar, nem diminuir a arrecadação, qual o objetivo? Distribuir o peso da carga tributária de maneira mais justa, mais progressiva, e não regressiva como é hoje, e que leve em conta meio ambiente e saúde humana.”
Na noite de quarta, o presidente da Câmara, Arthur Lira, manifestou o desejo de que o projeto de lei seja aprovado antes do recesso do Congresso, em julho. Já o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, se limitou a dizer que pretende concluir a tramitação da reforma ao longo de 2024.
Em nota enviada à reportagem, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) defendeu que “todos os alimentos” paguem menos impostos – o comunicado não faz menção explícita aos ultraprocessados, conceito que sofre críticas por parte da organização.
“Seguiremos acompanhando os debates no Congresso Nacional e defendendo que todos os alimentos cheguem mais baratos para a população brasileira. Com relação ao imposto seletivo, não acreditamos que ele tenha eficácia contra obesidade e doenças crônicas, que se combatem com informação e educação nutricional.”
Alinhamento tardio
A proposta enviada ao Congresso alinha o Brasil, de maneira tardia, ao conjunto de países que buscam criar impostos seletivos sobre bebidas açucaradas. Essas bebidas são consideradas um dos principais fatores por trás da epidemia de doenças crônicas e do crescimento dos índices de obesidade.
Até pela demora, avolumou-se de forma irrefutável o conjunto de evidências científicas que apontam que ultraprocessados em geral, e não apenas refrigerantes, são um enorme problema de saúde pública. No Brasil, estima-se que esses produtos respondam por 57 mil mortes ao ano, mais do que homicídios e acidentes de carro.
Organizações da sociedade civil mobilizadas em torno da reforma cobravam que produtos ultraprocessados fossem alvo do imposto seletivo. Diante da realidade política, sabia-se que dificilmente haveria condições de propor um modelo tão amplo. Ainda assim, existia expectativa em torno da possibilidade de que outros grupos de produtos nocivos à saúde, como salgadinhos e biscoitos, pudessem ser incluídos no texto enviado ao Legislativo.
“A gente tinha esperança de que viesse de parte do governo uma proposta mais arrojada, com ao menos algumas categorias de ultraprocessados. Ao mesmo tempo, como a conjuntura política é difícil e o debate é novo, não daria para imaginar que o governo conseguisse defender um imposto seletivo para todos os ultraprocessados. A inclusão dos refrigerantes nos permite ao menos fazer um debate com o Congresso a respeito dessa questão”, diz Marcello Baird, coordenador de Advocacy da ACT Promoção da Saúde.

Segundo o levantamento mais recente feito pelo Banco Mundial, atualmente há 132 países, estados ou cidades que adotam impostos específicos sobre bebidas adoçadas. Um dos pioneiros foi o México, que em 2014 definiu um tributo de um peso mexicano por litro de refrigerante.
O país viu os índices de doenças crônicas aumentarem de modo alarmante nas últimas décadas – o diabetes é o principal fator que induz a mortes prematuras. Com o tempo, o valor se mostrou baixo para induzir mudanças mais significativas no consumo.
Um documento produzido em 2020 pelo Banco Mundial listou quatro efeitos positivos decorrentes desse tipo de imposto: aumento de preços, aumento do conhecimento público sobre a nocividade desses produtos, estímulo a uma redução do uso de açúcar pela indústria e geração de receitas públicas.
“A magnitude e a natureza desses efeitos varia de acordo com o tamanho do imposto e a estrutura, o escopo de produtos cobertos e as características de tributação de uma determinada jurisdição. Os efeitos variam entre grupos da população, localização geográfica, tipos de comércio, categorias de bebidas e tamanho das embalagens”, relatam os pesquisadores responsáveis.
Ou seja, mesmo com a previsão de imposto seletivo pelo Ministério da Fazenda, ainda há muito em jogo durante a tramitação no Congresso Nacional. Um tributo baixo pode ter um efeito ainda menor na mudança de hábitos de consumo.
Zona Franca
O capítulo relativo ao imposto seletivo define que será “vedado qualquer tipo de aproveitamento de crédito do imposto com operações anteriores ou geração de créditos para operações posteriores”. Ainda não está claro, porém, se o novo modelo acabaria com os subsídios públicos dados às fabricantes de bebidas não alcoólicas que atuam na Zona Franca de Manaus.
“Hoje, quanto mais refrigerante vendido, mais o governo gasta”
A proposta enviada ao Congresso mantém uma série de isenções para empresas sediadas na área de livre comércio. A questão, no caso da indústria de refrigerantes e afins, é que existe uma cobrança de créditos em cima do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Essa cobrança é válida para todos os setores da economia como uma forma de evitar tributação em cascata, ou seja, que os tributos incidentes nas várias etapas de fabricação se acumulem, pesando sobre o preço final.
No caso da Zona Franca, mesmo sem pagar impostos, as fabricantes de bebidas cobram créditos tributários em cima da alíquota cheia, num esquema que faz com que o setor de refrigerantes chegue a dar arrecadação negativa ao governo – em outras palavras, quanto mais refrigerante vendido, mais o governo gasta. Trata-se de um subsídio dado desde o começo dos anos 1990 a um produto que hoje, irrefutavelmente, está ligado a uma série de problemas de saúde.
Como mostramos recentemente, apenas a Recofarma, fabricante dos concentrados da Coca-Cola, deixou de pagar R$ 4,3 bilhões em imposto de renda ao longo de sete anos. Nas nossas estimativas, no auge esse esquema representava uma perda de arrecadação superior a R$ 7 bilhões ao ano.
*Essas informações foram retiradas do site:O Joio e o Trigo.